Judeus e Cristãos Novos em Travanca
Como temos constatado,
Travanca de Lagos é uma povoação muito antiga, talvez das mais antigas de toda
a região, tendo na sua zona histórica ainda um testemunho vivo dessa realidade.
Já nas Inquirições de D. Afonso III vem referido que, no tempo de D. Sancho I,
por volta de 1180 D. Dulce de Aragão, sua esposa e rainha de
Portugal, comprou aqui 19 casais, o que mostra que já nesse tempo Travanca
seria muito desenvolvida. Mas, terá sido, provavelmente, no séc. XV e XVI que
Travanca atingiu o seu apogeu, a julgar pelo vasto património existente com o
cunho dessa época, como sejam as portas e janelas biseladas, mas também muitos
outros sinais que ainda não sabemos interpretar.
Recentemente várias
coincidências, puro golpe de sorte para mim, levaram a uma descoberta muito
interessante. Tudo Começou com um fogão a lenha, em pedra, que
fotografei um pouco à pressa, sem grandes condições, numa antiga casa medieval
em Travanca. Quando mostrei a fotografia ao Dr. Francisco Antunes, pessoa que
muito estimo, que para além de médico detém grandes conhecimentos de história,
nomeadamente de história local, e que se preocupa também com as questões do
património, este revelou-me que a dita peça talvez pudesse ser judia.
Segundo ele, os judeus,
que tinham no sábado o seu dia santo, o Sabat, nele não podiam realizar tarefas
domésticas, nem mesmo cozinhar. Sendo assim, seria a sexta-feira o dia
escolhido para as limpezas da casa e para a confeção da comida, inclusivamente a
destinada às refeições de sábado, que mantinham quente nesse fogão, talvez a
brasas e borralha. Nesse contexto, falou-me um pouco da história desse povo,
das perseguições, dos convertidos, dos cristãos novos e do
criptojudaísmo.
Falámos das suas casas
típicas e de como estavam relacionadas com as profissões. Era um povo virado
para os negócios, para as artes e ofícios, desde ferreiros, sapateiros a
alfaiates e também para as profissões liberais, como o notariado ou a medicina,
funcionando no piso inferior das suas casas as oficinas ou lojas e no piso
superior a habitação, a que acediam por meio de escadas internas. Apresentavam
uma porta para as escadas que davam para a habitação no piso superior e uma
outra, mais larga, para a loja. Tinham, geralmente, uma janela e um pequeno
janelo que servia para vigiar. Algumas casas tinham, também, passadiços e
alçapões. Tudo estratégias para iludirem as autoridades.
 |
fig.1 -casa onde se encontrou o fogão |
 |
fig. 3 - fogão - pormenor superior |
 |
fig. 2 - fogão - pormenor de frente |
Quando, no dia seguinte
a esta conversa, visitei um amigo e entrei na sua propriedade, uma quintinha
bem recatada no zambujeiro e
que em tempos fora pertença do Sr. Jerónimo Figueiredo, segundo o meu amigo
pessoa abastada, deparei-me com a sua casa, de aspeto muito antigo, na qual
sobressaia uma interessante porta com a verga em arco e encimada por um pequeno
janelo, tudo com o granito à mostra. Como tinha a conversa do dia anterior
ainda presente, fez-me pensar que podia tratar-se de uma casa judia.
 |
fig.4 - suposta casa judia |
 |
fig. 5 - detalhe da fachada |
Efetivamente são várias casas e não uma só,
correspondendo a mais que um período no tempo, todas interligadas e já com
muitas alterações que nos confundem um pouco. Mas, qual não é o meu espanto
quando, na primeira que visitei (fig. 4, ao fundo na imagem), que se compõe de
loja e de 1º andar amplo, encontrei uma estrutura central, inserida na parede,
que primeiro me sugeria ser um “fogão judaico” mas que, após investigar no dia
seguinte, me pareceu tratar-se de um Armário Judaico ou Aron Hakodesh, armário onde os judeus
guardam, na divisão inferior, os rolos da Torah - Pentateuco ou Livros da Lei, para serem lidos durante
o culto religioso, e, na divisão superior, o Menorah - candelabro de sete braços ou lâmpada perpétua.
Embora, como se pode ver na figura, este esteja globalmente preservado não está
completo, pois a pedra inferior ficou tapada quando subiram o piso em
aproximadamente 30 cm, o que nos impossibilita de reparar se a pedra tem os
dois pequenos círculos típicos para sustentar o rolo da Tora. Segundo o
proprietário a pedra inferior mantem-se intacta, apenas coberta com o cimento.
 |
fig. 6- Provável Aron Hakodesh |
 |
fig. 7 - Os rolos de Torah - livro sagrado |
 |
fig. 8 - Menorah - candelabro de 7 braços |
Mantive-me a explorar e
dei com uma saída nas traseiras, que dá para uma rua que liga o Zambujeiro a
Travanca, quando me deparei com outra casa que também me sugeria ter características
judaicas e ainda outras que, não sei se por sugestão ou não, me ofereciam
desconfiança. Parecia estar numa Judiaria, obviamente tudo meras suposições.
Voltei, na semana seguinte, com o Dr. Francisco Antunes que também ficou
entusiasmadíssimo com os achados e ainda mais ficou quando soube que uma das
casas vizinhas, que se encontra já em ruínas, pertencera a alguém de Rio de
Mel, povoação que, segundo ele, tem um passado com forte implantação judia.
 |
fig. 9 - casa da rua do zambujeiro |
 |
fig. 10- casa da rua do zambujeiro- de frente |
Constatámos que,
uma característica comum a várias destas casas era a existência de
uma Pilheira, que consistia num
armário embutido na parede, todo em pedra, onde possivelmente
as pessoas guardavam a LUZ e o livro sagrado. Só resta um exemplar numa
das casas, embora os proprietários de duas outras habitações se lembrem
de terem tido algo similar nas suas.
O passo seguinte foi
procurar, na zona histórica de Travanca, pistas da presença judaica ou de
cristãos novos, nomeadamente de simbologia cruciforme
junto das casas, que atestassem a sua presença entre nós. No 1º dia
acompanhou-me, nessa façanha, o meu velho amigo, também aficionado da história
local, Carlos Martins. Começámos por uma antiga casa que é pertença
da sua família infelizmente em avançado estado de degradação, que em
tempos teve um passadiço. Descobrimos que sob a caliça, caída ao longo dos
tempos, se afigura uma data de 1746, encimada por uma cruz. No interior, a casa
apresenta outros sinais de ser bem mais antiga, nomeadamente uma porta com as
ombreiras e a verga biseladas, que a remetem para o séc. XVI.
 |
fig. 11 - casa á esq. com o passadiço ao fundo, ruído |
 |
fig. 12 - pormenor da inscrição |
Continuamos pela
rua do Terreiro, e junto à Travessa do Terreiro, deparámo-nos com duas
singularidades: uma casa muito sui generis, com um pequeno janelo, e logo
a seguir, na casa que fica na esquina da travessa, uma cruz gravada na pedra, Eureca! A
casa ao lado tem uma data inscrita de 1623.
 |
fig. 13 - casa na rua do terreiro |
 |
fig. 14 - Cruz na casa da travessa |
 |
fig. 15 - pormenor da inscrição da data |
Seguimos para a Rua do
Outeiro, sempre procurando características nas casas que nos
revelassem algo, até que, por fim, numa pequena travessa encontrámos mais
uma casa com um elemento cruciforme.
 |
fig. 16 - travessa no Outeiro |
 |
fig. 17 - casa com elemento cruciforme |
 |
fig. 18 - Pormenor da cruz |
Voltámos atrás e subimos pelo Rua do Forno do
Senhor até ao largo da igreja matriz e aí, mais uma vez, deparámo-nos com outra
casa muito interessante, pertencente atualmente à família Madeira, que também tem inscrita uma figura cruciforme, mais complexa, estando
contida numa circunferência que depois é encimada por outra cruz. Existe,
também, um pequeno pátio que serve de entrada a duas outras casas, infelizmente
bastante degradadas, a pedir rapidamente uma reabilitação, ambas com as portas
e janelas biseladas.
 |
fig. 19- fachada com cruz |
 |
fig. 20 - detalhe |
 |
fig. 21 - outros pormenores |
Quando me aproximei
para fotografar as casas reparei que na ombreira da porta existia uma cruz,
embora muito ténue No seu interior pude observar um armário em pedra
de granito, junto à lareira, e uma pequena divisão com
uma provável pilheira, uma outra sala com janela de conversadeira,
nas portadas, muito antigas, tinha um postigo e no chão um pequeno alçapão, que
leva à loja. Todos estes achados, muito interessantes, estão em risco de desaparecer,
pelo abandono a que estão votadas estas duas casas.
 |
fig. 22 - casas do pátio |
 |
fig.23 - porta e janela biselada |
 |
fig. 24 - ombreira com cruz |
 |
fig. 25 - armário embutido em granito
|
 |
fig. 26 -pequena pilheira |
 |
fig. 27 - pormenores da sala |
Quando voltei a esta aventura acompanhado pelo
Dr. Francisco Antunes ainda encontrámos mais
dois símbolos cruciformes, um junto ao forno comunitário, um
pouco descontextualizado, e o outro na ombreira de uma antiga porta, mas que
presentemente, talvez há muitas dezenas de anos, faz de enchimento num antigo
muro.
 |
fig. 28 - Antigo muro com cruz |
 |
fig. 29 - elemento cruciforme em pedra |
Fotografei, ainda, uma
antiga casa, já em ruínas há muitos anos, na Rua do Outeiro, que
curiosamente tem uma pilheira no seu interior. Fica aqui o registo. Quanto
à teoria de que os judeus tivessem por cá passado, e muitos cá permanecido,
convertidos à fé católica, mantendo o judaísmo na intimidade do lar, penso que
é uma hipótese perfeitamente plausível, existindo imensos casos descritos na
Beira Alta, fazendo parte inclusive dum roteiro judaico. Por último, é de
referir que o período da expulsão dos Judeus de Castela pelos reis
católicos, a partir de 1492,
coincide precisamente com o dito período mais faustoso de Travanca.
 |
fig. 30 - antiga casa em ruínas no Outeiro |
 |
fig. 31 - fachada superior interna |
 |
fig. 32 - pilheira |
Como é óbvio, todas
estas suposições que aqui foram levantadas carecem de confirmação. Gostava
muito que pudessem vir a Travanca especialistas nesta área estudar estes
achados e talvez outros que nós não vimos, para que se pudesse intervir neste
património tão rico que Travanca tem com políticas de conservação e
protecionismo, evitando assim a delapidação de património arquitetónico e de
memórias de um povo tão antigo. É
urgente intervir!