domingo, 7 de novembro de 2021

A Irmandade de São Pedro

 

Fig.1 - Irmãos da Irmandade do Apóstolo de São Pedro de Travanca de Lagos

Esta fotografia, (fig.1), representa os irmãos da Irmandade do Apóstolo de São Pedro de Travanca de Lagos, captada no início dos anos 80, junto às escadas da Igreja Matriz de Travanca. A imagem transporta-me à minha infância feliz passada na aldeia e faz-me reviver momentos que partilhei de alguma forma com cada um dos figurantes. Poucos são os que atualmente ainda estão vivos mas, perante o poder duma imagem como esta, mantêm-se sobreviventes na minha memória.

Fig2 – Placa evocativa                          Fig. 3 - Benção Apostólica

A atividade da Irmandade de São Pedro mantem-se ininterrupta há precisamente 389 anos e é considerada uma das mais antigas de Portugal. Houve em 1982 uma grande celebração quando completou 350 de existência, tendo sido atribuído o nome da irmandade a uma praça da aldeia, descerrando para o efeito uma lápide evocativa do seu aniversário, por altura do São Pedro (fig.2) e, em 1997, quando celebrava os 365 anos, teve a honra de receber a Benção Apostólica, concedida pelo Papa João Paulo II, autenticada com o selo branco do Vaticano, (fig.3). Como outras irmandades congéneres, a sua característica principal é serem associações voluntárias de leigos que praticam o culto católico, em torno da devoção a um santo. O de travanca é o São Pedro.

Fig. 4 –Primeiro livro da irmandade Fig. 5 e 6 – Aprovação dos estatutos da irman dade

Foi oficialmente fundada em 26 de Abril de 1632, com 25 estatutos aprovados pelo então Bispo de Coimbra, Dom João Manuel, Conde de Arganil, partindo daí numa viagem secular até à atualidade (fig.5 e 6). O seu aniversário, no entanto, é comemorado no dia 18 de Janeiro, dia da Cátedra de São Pedro, com a realização de uma missa evocativa. Os seus estatutos foram sendo inúmeras vezes reformados ao longo da sua existência de forma a se adaptarem à mudança dos tempos. Neles estão definidas as normas do seu funcionamento, os direitos e os deveres dos seus membros. Os estatutos e demais registos estão escritos nos livros da Irmandade, desde a sua fundação até à atualidade. Requerem de momento cuidados especiais de preservação e restauro (fig.4,7, 8 e 9).

Para manter o culto ao santo padroeiro era necessário um altar para a sua devoção. Travanca teve uma capela dedicada ao apostolo de São Pedro, que foi administrada pela irmandade (ver artigo anterior – A enigmática Capela de São Pedro), assim vem descrita no Dicionário Geográfico de Portugal, vol.37,nº 97, p. 1049 a 1054, em memórias Paroquiais de 1775, (fig. 12), e foi no seu interior que se reuniram os irmãos, desde que há registos da Capela, cerca de 1650, até ao primeiro quartel do séc. XX, quando desapareceu definitivamente do núcleo histórico de Travanca. Infelizmente ainda não foi possível encontrar nenhum documento fotográfico do monumento. Há registos de enterramentos na capela desde a sua fundação, sem que pareçam estarem relacionados com os irmãos da Irmandade, pois a gestão dos enterramentos foi sendo feita pelo pároco, entre a igreja, o alpendre, o Adro e a capela, de forma aleatória, sem olhar a origem ou condição social. No entanto é de notar um facto curioso, (ver artigo anterior – Dr. Basílio Freire – Uma breve homenagem) a última pessoa a ser enterrada na capela, quando já eram proibidos os sepulcros dentro de igrejas ou ermidas há mais de 20 anos, foi Dona Teresa Bernarda Soares, continuando-se a desconhecer a razão desse acontecimento e se está relacionado com a fundação da capela.

Fig.10 – São Pedro no Altar-mor da igreja matriz         Fig.11 – Sede da Irmandade 

A hipótese de ter sido construída pela irmandade de São Pedro, quer tenha sido com o patrocínio de um ou mais irmãos abastados ou como vontade testamentaria de um travanquense rico, é a hipótese mais provável. Só a partir de 1740 começam a aparecer os primeiros registos, no livro de actas da Irmandade, com a referência precisa da capela como o local onde se realizavam as reuniões. Consta nos registos que depois da ruína da Capela e do seu desaparecimento se iniciaram as reuniões na sacristia da Igreja. A última tomada de posse dos órgãos de direção da Irmandade realizada dentro da capela foi no ano de 1887. Desde a década de 90 do séc. XX usam uma sala na Sede da Junta de Freguesia para esse efeito. (fig. 11). Atualmente o Altar-mor da Igreja Matriz é o local de devoção onde se mantém o culto ao São Pedro (fig. 10).

  

Fig.10 – São Pedro no Altar-mor da igreja matriz Fig.11 – Sede da Irmandade

Quando um irmão é admitido na confraria ele fica sujeito ao pagamento de uma joia de inscrição, ao pagamento de uma quota anual e ao cumprimento dos estatutos da Irmandade (fig.9).Podem ser Irmãos ausentes ou efetivos, estando estes últimos livres do pagamento anual. Reúnem-se de dois em dois anos para elegerem os órgãos da direção, que é composta por um Juiz, um Vice Juiz, um 1º secretário, um 2º secretário e um tesoureiro. Houve épocas que elegiam um vogal que tinha como função visitar os irmãos doentes. O atual Juiz, Tomás dos Santos Pedro, exerce o cargo com muita dedicação e mestria há 16 anos consecutivos.(fig.11 e 14)


  
Fig. 13 – Procissão de São Pedro Fig. 14 – Ao centro, o atual Juiz da Irmandade, Sr. Tomás

A Irmandade dedica-se principalmente a organizar os enterros e sepultar os mortos, especificamente, a acompanhar os irmãos defuntos até ao cemitério e realizar uma missa de corpo presente, devidamente trajados com a opa azul e o cabeção vermelho, cores do seu santo padroeiro, como uma homenagem final, prestando-lhes um enterro digno.


    
Fig. 15 e16 – Procissão de São Pedro, anos 70 do séc. XX

Fig. 17 e 18 – Procissão de São Pedro, anos 70 do séc. XX


Fig. 19 e 20 – Procissão de São Pedro, anos 70 do séc. XX

 
 
Fig. 21 – Procissão de São Pedro, anos 20 do séc. XX. Fig. 22 – Procissão de São Pedro, anos 70 do séc. XX, pormenor.

Outro desígnio da Irmandade, cumprindo assim também com os seus estatutos, é a realização anual da festa em homenagem ao santo padroeiro, no dia 29 de junho. É composta por uma cerimónia religiosa e uma festa de cariz popular. O São Pedro é um momento privilegiado de convívio social que se tornou na festa anual da aldeia. No dia da procissão, momento solene da Irmandade, enfeitam-se os andores, cumprem-se promessas e percorrem toda a aldeia, enfeitada para a ocasião, ao som de uma fanfarra (fig.15 a 22). Na festa popular há lançamento de foguetes (fig.23 e 24 ) e fogo-de-artifício e na minha infância lembro-me também que havia o lançamento de balões de ar quente pelo Sr. Miquelino, o taxista da aldeia. Tempos houve, até cerca dos anos 50 do séc. XX, que a Tuna de Travanca abrilhantava um aguardado baile noturno, que foi sendo substituído por aparelhagens e por concertos de bandas contemporâneas que faziam encher os recintos de baile com centenas de pessoas, vindas de outras freguesias.

Fig. 23 e 24 – Comissão da Festa popular de São Pedro,  anos 70 do séc. XX, com  o lançamento de foguetes.

Na procissão, os irmãos mais antigos transportam o pálio, espécie de dossel sustido por varas, debaixo do qual vai o sacramento (fig.25 e 26). Em tempos idos, em jeito de encenação oficial, o presidente da Junta acompanhava o prior ao pálio, debaixo da Umbrela. (fig.27 )

Fig. 23 e 24 – Comissão da Festa popular de São Pedro,  anos 70 do séc. XX, com  o lançamento de foguetes.

A imagem do São Pedro é transportada num Andor por 4 irmãos da Irmandade. É uma antiga e pesada escultura de pedra policromada, anualmente retirada do altar-mor da igreja paroquial, mas que foi recentemente substituída por uma réplica em gesso (fig. 28). Os restantes Andores estão a cargo dos populares. A imagem do andor de Santo António é uma antiga escultura de madeira e sai do altar da Capela de santo António. Necessita de cuidados de preservação e restauro.

Fig. 28 – Andor de São Pedro na Procissão em 2015

.Também as antigas bandeiras, pinturas em tela, uma do séc. XVIII (Fig.30), que eram levadas na procissão foram substituídas por estandartes de tecido, para assim as preservar.



Fig. 29– Conjunto de lanternas antigasFig. 30 – Bandeiras e carreta Conjunto de lanternas antigas Fig. 31 – Crucifixo usado antigamente na Procissão de São Pedro






A Irmandade tem ainda um valioso património constituído por lanternas antigas (fig.29), a necessitar de restauro,  varas de juiz, cruxifixos (fig.31), uma antiga carreta de transporte de defuntos (fig. 30), tudo merecedor de ser mostrado de forma digna , por exemplo, num museu de arte sacra, a criar em travanca. Mais uma vez é lançada a ideia como uma semente que se espera venha a germinar… Comecei este artigo com uma imagem da Irmandade de São Pedro, nas escadas da Igreja, e termino com mais duas do mesmo local, em épocas diferentes.

Fig. 32 e 33 – Irmandade de São Pedro,  anos 80  e 90 do séc. XX.