segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Travanca na história


O golpe, uma história de família!




Esta história que tenho para contar é muito curiosa e caricata. Em si mesma é banal, mas o enredo torna-a de alguma forma surpreendente.  Se pensarmos que parte dela se passa em Travanca de lagos, uma pequena aldeia no interior da Beira Alta, no início do séc. XX  e, para mais,  dentro de um contexto conturbado da nossa história de Portugal como foi o regicidio. É um episódio familiar em que a personagem principal é um tio meu, irmão da minha avó Maria Cerca, conhecido por Manuel Popó.

Ainda o povo chorava a morte do rei D. Carlos, já a criadagem fugia do palácio com tudo o que podia carregar, na tentativa de fazer face aos maus anos que se avizinhavam. Um desses criados em fuga era um camareiro do próprio rei, natural de Travanca de Lagos. Bem apetrechado com o saque e, com certeza, com as economias de uma vida, regressa à sua terra natal onde fica a viver dos rendimentos junto com a sua esposa, Maria da Cruz.

Desse roubo faziam parte serviços de jantar, pratas, uma baixela real, espadas, pistolas e muitos outros artefactos militares do rei D. Carlos, roupas, incluindo roupa interior, como sejam as próprias cuecas do rei como a chancela real. Com o passar dos anos a senhora já viúva viu-se forçada a vender parte das suas relíquias. Atualmente algumas dessas peças ainda se encontram na posse de famílias de Travanca. Ainda assim, a viúva Maria da Cruz teria uma boa situação económica visto que, por volta de 1930, com cerca de 70 anos, voltou a casar com um jovem rapaz de 20 anos, meu tio por sinal. É aqui que a história se torna peculiar e familiar também. Um pequeno golpe do baú perpetuado pelo meu tio Manuel mas que,  tenho em conta que foi cometido num meio rural muito conservador, provavelmente ainda ao sabor dos loucos anos 20, deve ter dado muito que falar!

O meu tio Popó chamava-se Manuel Estêvão da Costa, era o segundo de seis filhos de José Estêvão da Costa (meu bisavô) e de Maria Nazaré da Costa, ela conhecida pela alcunha de Cerca. Viviam no Entroncamento, em Travanca de Lagos, com uma família bastante alargada, que incluía ainda um irmão do José Estevão e o Pai, Alberto da Costa e ainda uns sobrinhos que tinham ficado órfãos por uma tragédia recente. Viviam economicamente bem pois tinham um negócio de família, uma sapataria, visto que o meu bisavô era sapateiro.

O negócio tinha prosperado durante a Primeira Grande Guerra e transformaram a loja numa pequena fábrica de calçado com vários empregados, onde fabricavam botas para a tropa, provavelmente para o fornecimento do Corpo Expedicionário Português, CEP, recém-criado em 1916 e que iria rumar a França em Janeiro de 1917. Essa nossa intervenção culminaria com a sangrenta batalha de La lys, em 9 de Abril de 1918.

Nesse ano a tragedia não se ficou só pela Guerra, essa que até tinha terminado com a assinatura do Armistício de 11 de Novembro de 1918. O país e o Mundo foram assolados pela Pandemia conhecida por Pneumónica. Tornou-se também uma tragédia familiar pois uma das muitas mortes ocorridas em Travanca foi o meu Bisavô, José Estêvão da Costa, com apenas 38anos, em 15/10/1918. A vida nos anos que se seguiram não deve ter sido nada fácil, perderam a pedra basilar da casa. Mais tarde houve a emigração para o Brasil e a situação melhorou.

A questão do golpe do baú do meu tio Manuel tem que ser visto como um oportunismo mútuo visto que a senhora estaria sozinha, sem filhos, sem ninguém a quem deixar o seu legado e as suas terras. Juntou-se, portanto, o útil ao agradável. O casamento não se sabe quantos anos ainda durou, foi até a senhora Maria da Cruz falecer e o meu tio tomar conta finalmente da desejosa herança.

                                                                                      Tio Manuel Popó

O que se sabe é que, em 1940, já viúvo, embarcou no navio Angola, junto com a mãe e três irmãos, rumo ao Brasil, Rio de Janeiro. À sua espera estava um irmão, Antonino da Costa, empresário estabelecido e bem sucedido. Passam lá o conturbado período da 2ª grande Guerra, voltando em 1946 para a casa de família do Entroncamento. No regresso iniciaram um negócio de hospedaria tendo como clientes habituais negociantes de ouro, entre outros, que ali pernoitavam. O último negócio da família foi uma papelaria com o correio oficial de Travanca.

                       hospedaria com os clientes na varanda                Posto do correio de Travanca

Partilho este episódio caricato, e pormenores familiares associados, que me foi dada a conhecer pela D. Leonor Borges Rodrigues, filha do Capitão Rodrigues, uma pessoa que considero muito especial, apaixonada por travanca e pela sua história. Eu conheci o meu tio Popó,  tinha 12 anos quando ele faleceu. Nunca soube de onde veio a alcunha, pois tratava-o por tio Manuel da Burra, este sim era um nome que lhe advinha de uma burra fiel que lhe servia de transporte. Eu próprio adorava andar na carroça à boleia. Sempre conheci o meu tio casado com a tia Isabel, uma brasileira muito simpática que regressou depois ao Brasil, da década de 80, quando ele faleceu. Não tiveram filhos. 

                                             tia Isabel                                Tio Manuel com a sua Burra


Agora que sei desta história fico a pensar se o meu tio deixou alguma das relíquias da referida herança lá por casa. Definitivamente a mim não me calhou nenhuma, com muita pena minha…