Quinta das Mercês
Antiga Quinta
da Via de Lagares
- A história possível e uma possível
interpretação da história
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fig.1 - Casa da Quinta das Mercês - pormenor |
A
quinta da Via de Lagares, nome por
que era conhecida a célebre Quinta das
Mercês até ao início do séc. XX, foi outrora uma bela e próspera propriedade
agrícola, encontrando-se atualmente muito repartida e a sua casa residencial em
estado avançado de ruína. Situa-se numa encosta na vertente norte de Travanca
de Lagos, mais precisamente, quando se desce para Lagares da Beira. A Quinta acompanha
a estrada pelo lado esquerdo, desde a cortada para a Quinta da Bica, até ao rio
Cobral, embora a estrada atravesse a quinta na extrema sul (fig.2).
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fig. 2 - Carta militar de Travanca com destaque da Quinta a roxo |
Tinha
cerca de 16 hectares e era constituída por terras de cultivo, pinhais, mato e
vinha. Para além da sua terra fértil, a mina de água existente na quinta, com o
seu enorme tanque de granito repleto todo o ano, permitia-lhe grandes culturas
e grandes colheitas. Anexos, mas dela fazendo parte, existiam também moinhos de
água junto ao rio Cobral, conhecidos por Moinhos da Quinta da Via, com casas
anexas onde residiram os moleiros e suas famílias ao longo de muitas gerações
(fig. 3 a 7).
fig. 3 e 4 - Quinta das Mercês , pormenores da paisagem |
O nome original da quinta da Via de Lagares estará relacionado,
como o nome indica, com uma via romana que, passando junto à quinta, continuava
depois por Lagares da Beira. Hoje é um caminho secundário, de serventia,
estando a calçada romana tapada desde que o caminho sofreu obras de alargamento,
supostamente, para melhorar o acesso em caso de incêndio. Uma parte da calçada
romana da encosta de Lagares está visível e identificada com uma placa de
sinalização. Poderia ser um simples caminho vicinal ou ser parte da via que
ligava Bobadela a Viseu.
A história desta grande propriedade começa há muitas gerações
atrás, num passado já longínquo, mas disso não há memória e os registos que nos
chegam são muito limitados para a datar com precisão. Só a partir do fim do
séc. XVlll é que aparecem os primeiros documentos paroquiais a referi-la como
residência de alguém, situação que não acontecia anteriormente em que apenas se
referiam à freguesia, não sendo tão explícitos com a morada. Desde essa época
até à actualidade, a quinta terá pertencido a 3 famílias. Até ao início do séc.
XlX, foi, provavelmente, pertença da família Mendes Monteiro, de Lagares da
Beira, do séc. XlX até ao primeiro terço do séc. XX, terá sido da família Brito
ou Pinto de Brito e, embora dividida, desde os anos 30 até à actualidade da
família Marques Fernandes, de Lagares da Beira.
Assim, em 1780 aparece o primeiro documento paroquial a
referir-se à quinta da Via de Lagares. É um assento de óbito de Violante Maria,
referida como criada do padre José Cardoso de Figueiredo, de Travancinha. O
segundo documento refere-se, no ano seguinte, à morte do dito padre, já com 80
anos, sendo este filho de Mariana Marques Mascarenhas e de António Cardoso de
Figueiredo, Sargento-Mor do Casal de Travancinha. Como nesse registo o padre
não vem referido como proprietário da quinta, o que a ser era geralmente
descrito no assento, nem parece ter exercido nenhum cargo paroquial, quer em Travanca
quer em Lagares, pois os párocos dessa época e anterior são conhecidos, não se
percebe, por enquanto, a sua ligação quer à quinta da Via quer a Travanca de
Lagos.
Passado um ano, em 1782, morre na quinta José Alvares, um
criado de Manuel Mendes Monteiro,
proprietário de Lagares da Beira. Como se tratava de um criado a residir na
Quinta, admite-se que o seu patrão fosse o proprietário da Quinta. Em 1808
aparece um registo de batismo em que os padrinhos foram António Monteiro e
Maria Eufrásia, da Quinta da Via. Pelo apelido poderiam ser da família do
proprietário ou talvez os caseiros. Enfim, no fim da primeira década do séc.
XlX a quinta foi adquirida por um bacharel em Direito, que em 1804 terminara o
seu curso em Coimbra. Chamava-se António
José de Brito, era natural de Loriga, filho de outro António José de Brito
e de Isabel Mendes, também de Loriga. Da sua vida passada até à vinda para
Travanca apenas se sabe, porque assim ficou descrito numa dita de
reconhecimento parental em 1860, que teve uma filha ilegítima de nome Custódia
Mendes de Brito, tida em solteiro com Ana Rita Pinto de Abranches, ainda em
Loriga, onde aí viria a ser exposta como filha de pais incógnitos. Já a residir
na Quinta teve o segundo filho ilegítimo, nas mesmas condições e com a mesma
Dona Ana Rita. Desta vez a criança, de nome João Pinto de Brito, foi exposta na freguesia de Travanca, em
Negrelos, no dia 20 de Agosto de 1820. O Dr. António José de Brito só viria a
legitimar os dois filhos, casando-se com a companheira da sua vida, em 1859, um
ano antes de falecer, reconhecendo-os depois como filhos e seus legítimos
herdeiros. João de Brito terá sido educado por eles desde pequeno, já a filha terá
vivido em Loriga, tendo casado depois com José Mendes de Torroselo e por lá
permanecido.
Este proprietário viveu no conturbado período da revolução
liberal e guerra civil, muito activa nestas paragens da Beira, como já foi
descrito num artigo anterior. Quando se instalou na Quinta deve ter feito obras
consideráveis, melhorando bastante a segurança e as condições de vida local,
visto estar bastante isolado, praticamente na fronteira entre Travanca e
Lagares e, portanto, vulnerável aos roubos e às pilhagens tão comuns naquela
época. Não se sabe da sua filiação político-partidária mas, a julgar pelas
histórias que se contam, poderá ter sido da fação liberal. Reza a história
local que o João Brandão usava a quinta, nessa época, como esconderijo quando
andava foragido. De facto, na casa da quinta existem dois quartos subterrâneos,
um dos quais entre a cozinha e a sala, sem janelas, com acesso apenas por
alçapão, como se de um esconderijo se tratasse, podendo ser usado por algum
foragido, como por exemplo o João Brandão, ou simplesmente para ele e a sua família
se esconder de alguma investida bélica. Talvez por isso a casa estivesse
fortificada, com grandes grades de ferro nas janelas e portas reforçadas com
fitas de metal por dentro e chapa por fora, impondo-lhe um ar austero, mas
seguro (fig. 8 a 11).
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fig. 8 - Casa da Quinta, pormenor |
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fig. 9 - porta com reforço exterior a chapa de aço |
fig.10 - porta da casa com reforço interior de chapa de aço |
fig.11 - Casa da Quinta, pormenor do gradeamento |
A casa, atualmente, encontra-se em avançado estado de ruína,
aparentando ter tido uma arquitetura rural severa, onde sobressai o seu granito
escuro e sombrio, mas no seu interior, pelo contrário, mostra que teve
exuberância de cor, ao gosto da época, sobressaindo as pinturas figurativas nos
tectos e os motivos florais nas paredes que, embora danificadas, ainda
resistiram ao tempo para serem registadas parecendo, no entanto, irrecuperáveis
(fig. 12 a15) …
fig. 12, 13, 14, 15 - Casa da Quinta, pormenores das pinturas figurativas dos tectos |
A Quinta da Via, neste período, era próspera e rica dando
guarida e sustento a muitas famílias, desde os moleiros aos caseiros. Entretanto,
nos anos que se seguiram, por volta de Novembro de 1845, entra em funções um
novo padre em Travanca, substituindo o pároco Ricardo António Mendes da Gama. Chamava-se
Manuel Joaquim Pereira Ribeiro da Rocha, mais tarde Presbítero Arcipreste do
distrito de Coimbra, cónego capitular da Sé de Coimbra, iria exercer funções
até cerca de 1861. Era natural de Passos da Serra, concelho de Gouveia,
residindo então em Travanca. Tinha ele uma bonita irmã mais nova que,
provavelmente, seria sua visita regular, talvez desde pequena. Numa das visitas
terá conhecido João Pinto de Brito, filho do Dr. António José de Brito, tendo
daí nascido, mais tarde, um romance entre os dois. Casaram em 1860, ele com 40
anos e ela com 24, mas primeiro os pais do noivo, que viviam em comunhão de
facto, tiveram que legitimar a sua própria relação casando-se na sua Quinta em
1859. A Dona Ana Pinto de Abranches, mãe do João de Brito, era natural de
Torroselo sendo filha de José Rodrigues de Abranches e de Isabel Pinto de
Torroselo. Foi uma relação de uma vida, cheia de mistério e talvez de
sofrimento, aquela que teve com o Dr. António. Só depois do casamento puderam
reconhecer legalmente o seu filho, então com 40 anos, após o que se deu o
enlace com a irmã do Reverendo, Dona Maria José de Sousa Pinto. Ela, nascida em
1836 em Passos, era filha de José de Sousa Pinto e de Delfina Rosa, ambos de
Passos da Serra. Antes de morrer, em 25 de Novembro de 1860, já com 85 anos, o
Dr. António ainda assiste ao casamento do filho, sendo o irmão da noiva o padre
que os casou. A esposa do Dr. António, Dona Ana da Quinta como era conhecida,
vem a falecer em 1869, com 80 anos. Segue-se um novo período próspero com uma
nova geração, a segunda da família Brito.
Desta união entre João Pinto de Brito e Dona Maria José de
Sousa Pinto, ou Pereira da Rocha, como a proprietária algumas vezes vem
mencionada no Anuário Comercial de Portugal, apelidos que lhe vêm dos avós
maternos, nasceram dois filhos. O mais velho, Augusto das Mercês Pinto de Sousa
e Brito (fig.16), ou Mercês como ficou conhecido em Travanca, nasce em
24/9/1871, no dia de Nossa Senhora das Mercês. O seu padrinho de batismo foi
José Soares Coelho da Costa Freire. O mais novo, Manuel Eduardo (fig. 17),
nasceu em 23/2/1874, tendo por padrinhos o seu tio, o Reverendo Manuel Joaquim
Ribeiro Pereira da Rocha, e Dona Teresa Augusta Soares Albergaria Cabral, irmã
da Dona Amélia da Quinta das Hortas.
Em 1904 morre João Pinto de Brito, com 76 anos, ficando à
frente dos destinos da Quinta a sua viúva, Maria José ou Dona Maria Cónega com era
conhecida na época, por associação ao irmão. Esta matriarca só virá a falecer,
na sua quinta, em 1918, já com 80 anos.
fig.16 - Augusto das Mercês |
fig. 17 - Manuel Eduardo de Brito |
Os
seus filhos tiveram vidas distintas. O Manuel Eduardo casa-se, na primeira
década do séc. XX, com uma professora primária de Gouveia, talvez de Passos da
Serra, terra dos seus avós maternos. No entanto deixou 3 filhos ilegítimos, que
nunca reconheceu, tidos de uma bela jovem de Travanca por quem se enamorou,
fruto de uma relação nunca consentida pela sua mãe pelo facto dos jovens serem
de classes sociais distintas. A jovem, de nome Maria da Conceição Costa,
abandonou Travanca em 1903, com os três filhos e refez a sua vida em Cascais,
junto dos pais e irmãos.
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fig.18 - Tuna de Travanca de Lagos em 1914, com os irmãos Augusto das Mercês e Manuel Eduardo nos extremos da foto |
O Augusto das Mercês, sempre mais ligado a Travanca, teve uma
vida folgada. Foi presidente da primeira Tuna de Travanca de Lagos (fig.18),
onde participa também o irmão, e foi Regedor de Travanca entre os anos de 1914
e 1915. Nunca casou, mas teve também vários filhos ilegítimos. De uma das criadas
da Quinta, Ana Mendes mais conhecida por Ana das Mercês, teve um filho em 1904,
chamado Eduardo e, em 1905, uma filha de nome Maria das Mercês. A Maria foi
educada na quinta e reconhecida como filha legítima, em 29/9/1932, por altura
do seu casamento. O Eduardo e a mãe mudaram-se para o povo, onde passaram a
viver numa pequena casa, já nos anos 20. Augusto Mercês teve ainda outro filho,
em 1914, António Mendes, alcunha de Moio, tido de uma jovem de Travanca chamada
Maria Teresa Cravo, que terá emigrado para o Brasil, tendo o filho sido criado
pela avó, Conceição Cravo, até à idade de ir para a tropa.
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fig. 19 - Carimbo da Quinta usado pelo Augusto das Mercês |
Com a morte da Dona Maria Cónega, em 1918, fica com os
destinos da Quinta da Via de Lagares o Augusto das Mercês. É nesta fase que a
quinta muda de nome para Quinta das
Mercês, em honra ao seu recente proprietário (fig. 19), e atinge,
provavelmente, o seu apogeu, se não pelos rendimentos agrícolas, pelo menos
pelas opulentas festas que dava e que se iriam tornar frequentes nesses loucos
anos 20 em Travanca. O Mercês vivia dos rendimentos e tinha uma vida de luxo.
Conta-se que, na época, tinha um carro, o que era uma sensação na Terra. Quando
queria ir de carro da quinta até ao povo, o que era uma subida considerável, ou
ia puxado por uma junta de bois ou burros ou, então, pela pequenada entusiasta
que o ajudava nessa tarefa! Com o tempo, esta vida faustosa levou ao declínio
da Quinta, às hipotecas, à ruína. Em 1930 morre a sua governanta, pessoa que
ele muito estimava, ficando a viver só com a filha. Vende o que tem e muda-se
para Viseu, onde investe numa empresa de material de construção, A Combatente. Casa a filha em 24/9/1932,
no dia em que fazia 61 anos de idade, perdendo-se depois o seu rasto. Contava o
Sr. Ivo que teria morrido em Vil de Moinhos, freguesia de Viseu.
Por volta de 1930, a quinta, já hipotecada, foi adquirida por
Alexandre Marques Fernandes, um
abastado emigrante no Brasil, natural de Lagares da Beira. Segundo conta um
familiar, teria feito fortuna com um elixir para o cabelo chamado Juventude
Alexandre (fig. 20), muito popular no Brasil, um produto eficaz que
restaurava a cor natural do cabelo e que lhe valera, para além da fortuna, um
prémio internacional obtido em Paris. Segundo é referido por Carla Francini Terci, terá
sido comercializado no Brasil desde o ano de 1908 até cerca de 1960. O
engraçado, segundo o sobrinho, é que o tio sendo careca não podia usufruir da
sua fórmula! Ainda hoje se produz em Portugal, embora a patente tenha deixado
de pertencer à família, é comercializado pelo laboratório Gestafarma.
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fig. 20 - Anúncio na revista Fon-Fon, Brasil 1930 |
Entretanto o senhor, não tendo filhos, deixou, logo à
partida, a propriedade para os seus 4 irmãos que, ainda em 1932, a escrituraram
e dividiram pelos quatro, tendo todas as partes cerca de 4 hectares (fig. 21).
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fig. 21 - Carta militar com o pormenor da divisão da Quinta em 4 partes, aproximadamente |
António Marques
Fernandes, na época
solteiro, proprietário da Quinta do Borralhal, em Lagares da Beira, viria a
casar e viver em Maceirinha, Seia, e mais tarde emigraria para o Congo, ficou
com a parte que continha a casa de residência da Quinta, o lagar e terreno
misto.
Adelino Marques
Fernandes, casado com
Blandina de Figueiredo Fernandes, ficou com a parte que continha a casa dos
Caseiros, a forja, a mina e, claro, terra com fartura.
Agostinho Marques
Fernandes e a esposa,
Dona Maria Augusta Fernandes, ficaram com a parte da quinta a sul, mais perto
de Travanca.
Dona Elisa do Rosário
Fernandes e o marido,
António Mendes Gonçalves, ficaram com o estremo norte da quinta, fronteiro ao
rio Cobral, contendo os chamados Moinhos da Via.
Nenhum dos quatro irmãos chegou a viver na quinta mas,
também, esta nunca esteve desocupada. Na casa principal, pertença de António M.
Fernandes, passou a viver como caseiro, desde essa altura, José da Costa e sua família,
naturais de Travanca, cuidando dessa parte da quinta. Mais tarde, uma filha, chamada
Conceição Costa, casa com Joaquim
Carvalho, Saca de alcunha, passando a residir lá com a família que foi formando
e tomando conta dessa parcela. Na casa ao lado, a dos caseiros, pertença do
Adelino, passa a viver outra filha de José da Costa, Maria das Dores da Costa,
quando casa com António da Costa
Brito, conhecido pela alcunha do Forcas,
activando a forja que se situava no piso inferior. Viveram lá até meados dos
anos 80. Esta parcela foi, na última década, comprada por um casal Norueguês.
Nos anos 50, na parcela referente à Dona Elisa viveu uma
filha, conhecida por Marquinhas, casada com um senhor, também de Lagares da
Beira, chamado Francisco Coelho, (fig. 24). Teve ainda outra filha conhecida
por Teresinha. Posteriormente esta parcela teve como caseiro, até meados dos
anos 90, o senhor Albertino Marques Miguel, conhecido por Coradinho. Actualmente a propriedade também já foi vendida a um
casal de Ingleses. A parcela do Agostinho também foi vendida, encontrando-se
novamente à venda.
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fig. 24 - Casa de habitação e moinho de água reconstruidos |
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fig. 25 - Ruínas de um moinho de água da Quinta |
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fig. 26 - Paisagem da Quinta com pormenor de uma casa de habitação junto ao moinho ruído |
Só a quinta de António Marques Fernandes ainda está na posse
dos herdeiros. O seu proprietário actual, o Dr. António Pinto Fernandes,
residente no Porto, tem-na à venda. Segundo ele conta, a quinta teve um
projecto de requalificação que previa a reconstrução da antiga residência, com
a recolocação da sua antiga e majestosa chaminé, mas, infelizmente, o projecto
não avançou.
Resta portanto, para bem da história e do património,
que alguém sensível a estas questões, e também com gosto pela terra e pela
nossa Terra, lhe queira repor novamente a glória de outros tempos, dando àquele
granito patinado nova vida, novo rumo!
Agradecimentos,
Fotos – 16,17,19 – Maria Eduarda Garcia
Foto 18 – António Manuel Soares
Foto 20 – Carla Francini Hidalgo Terci