sexta-feira, 5 de setembro de 2008

O caso do pároco de Travanca de Lagos



AS FARPAS

CHRÓNICA MENSAL

DA POLÍTICA, DAS LETRAS E DOS COSTUMES

TERCEIRA SÉRIE TOMO II Fevereiro a Maio 1878


RAMALHO ORTIGÃO--EÇA DE QUEIROZ























As farpas são uma das mais conhecidas e mordazes publicações satíricas de finais do séc. XIX, escritas por Eça de Queirós e Ramalho Ortigão e publicadas em fascículos entre Maio de 1871 e 1872, altura em que Eça abandona a publicação, mas continuando a ser escrita por Ramalho até 1882.
“São uma admirável caricatura da sociedade da época. Altamente críticos e irónicos, estes opúsculos publicados entre 1871 e 1872 satirizam entre outros, com requintado e inteligente humor, a imprensa e o jornalismo partidário ou banal; a Regeneração, e todas as suas repercussões, não só a nível político mas também económico, cultural, social e até moral; a religião e a fé católica; a mentalidade vigente, com a segregação do papel social da mulher; a literatura romântica, falsa e hipócrita. Coligindo os opúsculos mensais da capa alaranjada e decorados com o diabo Asmodeus - o génio impuro de que falam as Escrituras - e que a cada número se esgotavam nas bancas de Lisboa (o primeiro número esgotou uma primeira edição de 2000 exemplares).”

Pois bem, nesta III série, vem em destaque um episódio muito curioso que se passa em Travanca de Lagos. O caso relaciona-se com o pároco de Travanca que, provavelmente, seria o prior José Mendes Abreu e Costa. A seguir transcrevo o texto integral que diz respeito a este episódio e tal como os autores na época, escuso-me a acrescentar comentários desnecessários.

“Deram-se ultimamente dois casos profundamente característicos: o caso de Joanna Pereira e o caso do parocho de Travanca de Lagos.
No caso de Joanna Pereira vemos três reos confessos e convictos de três crimes: Joanna, de adultério; Carlos, de tentativa contra o pudor por meio da chlorophormisacão; o carroceiro, da remocão de um cadáver; todos três cúmplices e conniventes no crime de cada um.

Como procede a sociedade? Não tomando conhecimento de nenhum d'estes attentados e despedindo os reos em paz!

No caso do parocho de Travanca de Lagos, o réo e accusado de ter falsificado uma certidão de edade para o fim de salvar um mancebo do recrutamento militar. Como precede a sociadade? Condemnando o parocho a oito annos de degredo para a costa ds Africa!

O primeiro caso e um tríplice attentado contra a ordem social. Asociedade não só o não pune mas nem sequer o julga.
O segundo e uma contravencão de um regulamento administrativo. A sociedade não só o julga mas pune-o com uma das máximas penas do código.

* * * * *
Não analysamos o procedimento havido com Joanna Pereira e os seus co-réos. Pomol-o simplesmente em parallelo com o procedimento havido como parocho de Travanca de Lagos, e dizemos que a condemnacao d'este e uma iniquiedade monstruosa.
O crime do que é accusado o padre, condemnado por havel-o commettido a oito annos de degredo, e crime unicamente perante a letra de um regulamento de carácter não só transitorio mas arbitrario--o regulamento do serviço militar.

O parocho foi condemnado por tentar salvar do serviço um recruta. Alterar um número, escrever um algarismo por outro, so pode involver intencão criminosa quando d'esse acto proceda uma offensa de interesses.

Viciar a data de uma letra ou de um contrato e indubitavelmente um grave crime, porque offende o interesse do commercio, ou o da indústria, ou o da propriedade. Mas alterar a data de uma certidão de baptismo, para o facto de isemptar do serviço militar um cidadão, nao é offender um interesse social; é o contrario d'isso: é servir o interesse que todas as sociedades teem em que deixe de haver militares.

* * * * *
O crime, no estado de pura tentativa, pelo qual o padre foi julgado opunido com degredo de oito annos, se se chegasse a realisar e se estendesse do caso particular de uma freguezia do reino a todos os casos análogos na Europa inteira, seria o mais assignalado dos benefícios à civilisacão e à humanidade. Daria em resultado a eliminacão do militarismo e da guerra.

Os crimes pelos quaes Joanna Pereira e os seus collaboradores não foram punidos nem julgados, se se estendessem da casa da travessa da Oliveira ao resto da sociedade, dariam os seguintes effeitos:

Os cadávares seriam propriedade dos carroceiros, o que acabaria, de uma vez para sempre, com o uso dos cemitérios e com a prática de enterrar os mortos.

Os Antonys teriam ao abrigo das leis, um desenlace inoffensivo para todos os seus dramas: _Resistia-me, chlorophormisei-a!_

Finalmente, para o facto da seleccão da espécie, os maridos seriam substituidos pelos mestres de piano dados ao abuso das bebidas alcoolicas--o que tornaria o casamento inútil e a familia impossível, convertendo aos pianos, reforçados pela aguardente, nos únicos instrumentos da perpetuidade da raça.

* * * * *
Expond0 simplesmente os dois casos referidos e o modo como a sociedade os resolveu, achamos inútil accrescentar commentarios, e fazemos unicamente à sociedade os nossos cumprimentos.”
Jduarte

Sem comentários:

Enviar um comentário